quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Os painéis segundo Almada Negreiros

Em 1918, José de Almada Negreiros, Amadeo de Souza-Cardoso e Santa Rita Pintor dirigiram os seus passos para a Rua das Janelas Verdes, onde visitaram uma vez mais o Museu Nacional de Arte Antiga. Diante dos “Painéis de São Vicente” juraram um pacto: haviam de estudar aquela obra da pintura do século XV até ao fim das suas vidas. De acordo com o relato de Almada, a jura ainda implicou uma ida ao barbeiro, onde os três se desfizeram das sobrancelhas e do cabelo, rapados com ímpeto radical e modernista. Amadeo e Santa Rita morreriam nesse mesmo ano. O primeiro, em Outubro, vítima da influenza que grassou durante a I Guerra Mundial. O segundo, logo em Abril, vítima de tuberculose. Almada ficou por isso sozinho na tarefa de descobrir o que estava naquelas tábuas. E é esse trabalho de José de Almada Negreiros que o jornalista e investigador António Valdemar vem repor, organizar e contextualizar neste volume que a Assírio & Alvim deu à estampa por estes dias no âmbito da celebração dos 120 anos do nascimento do artista.
 
Esse caminho de Almada na hercúlea tarefa de descobrir o significado dos “Painéis de São Vicente” pode contar-se em mais duas anedotas. Em 1926, dirigiu-se uma vez mais, desta feita com José de Bragança, até então amigo, historiador de arte e polemista, ao Museu Nacional de Arte Antiga. Ali, defronte dos painéis e depois de longa conversa pelo caminho, terão notado que a disposição das tábuas, em dois trípticos, contrariava a perspectiva dos ladrilhos desenhados no chão que os 60 retratados pisam. A polémica sobre os painéis estava então ao rubro, e este achado era, porventura, o mais importante de todos os avanços de uma investigação com poucos resultados. José de Bragança terá sido mais lesto na apresentação pública da novidade e, em conferência na Sociedade de Geografia, anunciou ter sido ele o autor de uma nova proposta que reorganizava a ordem dos seis painéis (e que é aquela que subsiste até hoje), transformando-os num políptico. A reacção de Almada, que reivindicava para si a descoberta acusando o amigo de traição, chegou na forma de cartas e artigos publicados no “Diário de Notícias” — a arena predilecta para as disputas sobre a questão dos painéis nos anos 20. Mas, para lá das polémicas publicadas na imprensa e das discussões entre os dois na Brasileira, perante farta e distinta plateia, há também relatos de uma cena de pancadaria ali pelo Chiado.

“Almada — Os Painéis, a Geometria e Tudo” é não só um erudito repositório de quase todos os textos de Almada sobre o assunto (falta apenas “A Chave Diz”) mas também o lugar onde se contextualiza e enquadra toda a sua abordagem, quer na introdução produzida por António Valdemar quer no prefácio assinado por José Manuel dos Santos. Maior interesse encontra-se ainda nos apêndices documentais que figuram nas últimas páginas (e onde avultam as cartas de monsenhor Elviro dos Santos ao “Diário de Notícias”, de onde sobressai a descrição de os painéis terem sido encontrados como quatro quadros, tal como havia sido reportado por Joaquim de Vasconcelos no texto inaugural publicado em 1895 em “O Comércio do Porto”).

A "pièce de résistance" desta colectânea de textos encontra-se porém nas oito entrevistas a José de Almada Negreiros realizadas pelo próprio António Valdemar para o “Diário de Notícias”, onde foram publicadas em Junho e Julho de 1960. A estas foi ainda acrescentada uma última, que se manteve inédita até ser encontrada no espólio do pintor. É aqui, nestas conversas que sucederam em roda livre, que Almada descreve todo o processo que levou a geração de Orpheo a interessar-se pelos painéis e como utilizou a geometria — uma proporção harmónica ou número de oiro ou o “Cânone”, como lhe chama — para encontrar “o novo no antigo”, à maneira do preconizado por Delacroix. Manejando essa relação 9/10 que se revela, por exemplo, no ângulo de 26 graus que a vara do santo produz com a sua perpendicular, e que mais tarde, em 2003, também seria explorada por Paulo-Guilherme d’Eça Leal em estudo similar, Almada Negreiros chega à conclusão de que os painéis são parte de um retábulo concebido para a Capela do Fundador, no Mosteiro da Batalha, apesar de nunca aí terem estado. Desse retábulo faziam parte não apenas as tábuas do políptico mas também as dos quadros dos santos, igualmente atribuídos a Nuno Gonçalves (São Pedro, São Teotónio, São Paulo e santo franciscano), as duas pinturas de São Vicente (atado a uma coluna e na cruz em aspa), duas outras de que não se conhece o paradeiro e ainda o “Ecce Homo”, que Almada considerava a pintura mais bela do mundo e que é o centro de todo este conjunto. Todas estas obras se encontravam, à época, na mesma sala do Museu de Arte Antiga. Curiosamente, hoje, só os “Painéis de São Vicente” podem ser apreciados pelo público, estando os outros quadros em salas interditas aos visitantes.

É um longo e empenhado trabalho de Almada, com alguns erros que hoje já se podem reconhecer (o “Ecce Homo” terá sido pintado no século XVI e portanto não é contemporâneo dos painéis), mas que tem a particularidade de tentar encontrar uma regra, um “cânone”, que está igualmente representado no tesouro de Delfos, nos frescos de Creta, no vaso de Suse, no melhor da arte bizantina, árabe, hebraica, romântica, gótica ou moderna. Um caminho que se distinguiu, e que distinguia Almada, daquele que levou a esmagadora maioria dos outros historiadores de arte ou meros curiosos pela questão dos painéis em busca de verem o seu nome inscrito na controvérsia que os envolve. Ao contrário da procura de um miraculoso documento que poderia deslindar toda a verdade, Almada Negreiros investiu na geometria que neles estaria inscrita. Para ele, os documentos sempre foram os próprios painéis.

Resta então uma terceira e última anedota. Em 1958, o escultor Leopoldo de Almeida, o arquitecto José Cortez e o próprio Almada terão regressado ao Mosteiro de Santa Maria da Vitória, na Batalha. Na Capela do Fundador, Cortez terá apontado o terço poente da parede norte, e Almada exultou: “É aqui.” “Sem mais, abraçámo-nos os três”, conta numa das entrevistas. Era o lugar perfeito para os 15 painéis de um retábulo com 12 metros de altura que, nas suas elucubrações, concedia unidade a um todo. Nesse particular, este livro é também um valioso documento, por reunir textos vários que se encontravam dispersos e que vêm revelar-se representantes de uma tese com poucos pontos comuns senão mesmo contrária à oficial, publicada por José de Figueiredo (republicano, director do Museu de Arte Antiga) em 1910 e que dá Nuno Gonçalves como autor, a veneração de São Vicente como tema e a Sé de Lisboa como o seu lugar eleito. Almada não aceita a autoria de Nuno Gonçalves (nos textos são sempre tratados como sendo os “painéis chamados de Nuno Gonçalves”) e identifica o santo como o infante Dom Fernando (devido a duas iniciais que terá encontrado na dalmática). A esse respeito, a sua posição encontra-se bastante mais próxima daquela professada desde 1925 por José Saraiva. Almada não ousa, contudo, atribuir os painéis a um artista estrangeiro, aceitando nesse ponto uma doutrina comum e que data desde os alvores nacionalistas da República, tendo chegado incólume aos dias de hoje.


In:" http://expresso.sapo.pt/cultura/2015-09-26-Os-paineis-segundo-Almada-Negreiros"

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Voando para ti



Poema inspirado no quadro ( Voando para ti ) de Domingos Magalhães de Oliveira

Voando para ti.
Voando para ti com asas de anjo e olhos embriagados de céu.
Não importa se as minhas estradas são feitas de tempo
De vento ou se desabo no abismo.

Que sei eu deste mistério de querer voar para ti?
Numa rota onde a minha alma quase se perde de mim?
Encho a noite de estrelas e no deslumbramento da ascensão
escuto as canções que tens no peito...

Talvez essa melodia adormeça a escuridão que quer devorar estas asas
Quando insistem em levar o teu coração num voo mais alto.
Que sei eu deste mistério de querer voar para ti?

Autor: Olga Florência

sábado, 21 de junho de 2014

Celebração Solstício Verão


Celebração Solstício de Verão na Quinta da Regaleira - Sintra, Visita e Banquete de Solstício.

Escultura - Domingos Magalhães de Oliveira
Pintura - Oscar Alves
Música - Hugo Claro
Canto - Sofia Claro - Hugo Claro
Poesia - David Zink, Eladio Climaco, Helena Ramos, Maria De Lurdes Nogueira
Fotografia - Olga Florência


terça-feira, 17 de junho de 2014

Comemoração Solstício Verão 2104

 

21 Junho (sábado) - Quinta da Regaleira - Sintra
18h - Visita Guiada - 20H - Banquete Solstício

ARTE com mostra de pintura e escultura de Oscar Alves e Domingos Oliveira; POESIA por João David Zink e Lurdes Nogueira; MÚSICA Com Hugo Claro e Sofia Sousa Claro.

Visita Valor: 10,00€ - Banquete: 15,00€ - Visita e Banquete Valor: 25,00€
Crianças até 9 anos - Gratuito - Jovens até 18 anos - 1/2 Valor


INSCRIÇÃO OBRIGATÓRIA: Tlm. 918 959 854 0u vitriol.portugal@gmail.com

SOLSTITIUM
Por instantes, duas vezes em cada doze meses, o Sol alcança a sua maior declinação elíptica – e parece suspender-se em luz pura. Nesses dois dias mais longos do ano se marca o início dos ciclos maiores da Mãe-Natureza, celebrados desde que o Homem pôde conhecer e medir o seu lugar no Universo.
Desde a mais remota Antiguidade assinalamos, sob a forma de alegorias míticas e festas telúricas, a abertura gloriosa das Portas Solsticiais. E a própria etimologia latina do SOLSTITIUM nos remete para esse breve momento em que o Astro se sustém, grande e jorrando luz, franqueando os seus portais a quem ousa olhá-lo de frente.
Uma das faces do dualismo primordial do preto e do branco, expresso também nas duas faces do deus Janus, o Grande Arquitecto bifásico, está perfeitamente figurada na festa dos Fogos de S. João de Verão, o Solstício de Câncer, personificado no Baptista, e que assinala a travessia da Porta dos Homens, a abundância e a plenitude do que é perfeito.
O mesmo Sol que ilumina o Ser humano, neste momento de transição das trevas para a claridade, é o mesmo que faz germinar na terra os frutos. Por isso, nesta cerimónia, celebramos também o trigo, o vinho e o azeite – cada um na sua carga simbólica própria e todos como representação da capacidade geradora, desse início em que da semente brotam os primeiros rebentos que hão-de crescer, frutificar e multiplicar-se.

VITRIOL – ASSOCIAÇÃO DIVULGAÇÃO LÍNGUA CULTURA LUSÓFONA

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Solstício de Inverno 2013 - Quinta da Regaleira - Sintra


No momento em que o Homem se junta à volta do Fogo, realizou-se a celebração numa comunhão de ideais com a participação: música Hugo Claro e Sofia Sousa Claro; poesia Maria Lurdes Nogueira, João David Zink, Olga Florência, José Paulo Sousa, Júlia Pires, António M. Ferro, Margarida Canto, João Camacho ... Saudando o RENASCIMENTO em todos Nós.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Celebração Solstício de Inverno 2013


Mais um Solstício de Inverno, em que viveremos a noite mais longa do ano. Como que num recolhimento uterino desejado, o Sol afastou-se do hemisfério norte. O Inverno é a época para semear. 

No momento em que o Homem se junta à volta do Fogo, realizou-se a celebração numa comunhão de ideais com a participação: música Hugo Claro e Sofia Sousa Claro; poesia Maria Lurdes Nogueira, João David Zink, Olga Florência, José Paulo Sousa, Júlia Pires, António M. Ferro, Margarida Canto, João Camacho.

Saudamos o Solstício fecundo;
Saudamos a Luz;
Abrimos os nossos corações;
Levantamos as nossas mãos;


Sobe, chama, sobe!

Saudamos o Sol;
Saudamos a Vida;
Saudamos a Origem!


VITRIOL - ASSOCIAÇÃO DIVULGAÇÃO LÍNGUA CULTURA LUSÓFONA

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Invictus


Dentro da noite que me rodeia
Negra como um poço de lado a lado
Agradeço aos deuses que existem
por minha alma indomável

Sob as garras cruéis das circunstâncias
eu não tremo e nem me desespero
Sob os duros golpes do acaso
Minha cabeça sangra, mas continua erguida

Mais além deste lugar de lágrimas e ira,
Jazem os horrores da sombra.
Mas a ameaça dos anos,
Me encontra e me encontrará, sem medo.

Não importa quão estreito o portão
Quão repleta de castigo a sentença,
Eu sou o senhor de meu destino
Eu sou o capitão de minha alma.

Poema de William Ernest Henley, escrito em 1875, poema que Mandela lia todos os dias na cadeia e que lhe serviu de inspiração para continuar cada dia. 
 

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Conferência e Roteiro: Os Painéis S. Vicente de Fora


Ciclo de Conferências do Monte da Lua: «Os Painéis de S. Vicente de Fora: a iconografia em questão» 


Os «Painéis de S. Vicente de Fora» que hoje se encontram no Museu Nacional de Arte Antiga, ainda que não suscitem grandes divergências no que respeita a considerações de ordem estética, sendo consensual o fascínio que exercem, são, no entanto, o objecto da maior controvérsia na historiografia do património artístico português, aquela que já fez correr mais tinta e despertou maiores paixões, e que apesar disso, volvido mais de um século da sua redescoberta, se encontra longe de estar definitivamente solucionado.

A presente abordagem, incidirá sobre os grandes pontos de divergência: a disposição dos painéis e o destino iniciais, o seu significado, a identificação da personagem central e demais figuras, as diferentes teses («vicentina», «catarinista», «fernandina», «cardinalícia», «crispiniana», «carlista» e dualistas destas), a autoria, o(s) patrocinador(es), e a data de execução. Serão demonstrados os resultados da própria investigação do conferencista, e à luz desta apontados novos caminhos a percorrer.

Autor: João David Zink, historiador de arte

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

A calçada portuguesa

Apesar de os pavimentos calcetados terem surgido no reino por volta de 1500, a calçada à portuguesa, tal como a entendemos hoje, foi iniciada em meados do Séc. XIX. A chamada “calçada à portuguesa”, em calcário branco e negro, caracteriza-se pela forma irregular de aplicação das pedras. Todavia, o tipo de aplicação mais utilizado hoje, desde meados do Séc. XX, designado por “calçada portuguesa”, é aplicado com cubos, e tem um enquadramento diagonal. Calçada à portuguesa, e calçada portuguesa são coisas distintas.


A calçada começou em Portugal de forma direrente da que hoje é, mais desordenada. São as cartas régias de 20 de Agosto de 1498 e de 8 de Maio de 1500, assinadas pelo rei D. Manuel I, que marcam o início do calcetamento das ruas de Lisboa, mais notavelmente o da Rua Nova dos Mercadores (antes Rua Nova dos Ferros). Nessa época, foi determinado que o material a utilizar deveria ser o granito da região do Porto, que, pelo transporte implicado, tornou a obra muito dispendiosa. O objetivo seria que a Ganga, um rinoceronte branco, ricamente ornamentada, não sujasse de lama com o calcar das suas pesadas patas, o numeroso e longo cortejo, com figurantes aparatosamente engalanados com as novas riquezas e adornos vindas do Oriente, que saía à rua em pleno Inverno, aquando do seu aniversário a 21 de Janeiro. A comitiva ficava manifestamente suja, daí a decisão de calcetar as ruas do percurso como forma de dar resposta ao problema. Sendo a única vez no ano em que o rei se mostrava à população vem daí a explressão: “Quando o rei faz anos…”

O terramoto de 1755, a consequente destruição e reconstrução da cidade lisboeta, em moldes racionais mas de custos contidos, tornou a calçada algo improvável à época. Contudo, já no século seguinte, foi feita em Lisboa no ano de 1842, uma calçada calcária, muito mais próxima da que hoje mais conhecemos e continua a ser utilizada. O trabalho foi realizado por presidiários (chamados “grilhetas” na época), a mando do Governador de armas do Castelo de São Jorge, o tenente-general Eusébio Pinheiro Furtado. O desenho utilizado nesse pavimento foi de um traçado simples (tipo zig-zag) mas, para a época, a obra foi de certa forma insólita, tendo motivado cronistas portugueses a escrever sobre o assunto. Em O Arco de Sant’Ana, romance de Almeida Garrett, também a calçada seria referida, tal como em Cristalizações, poema de Cesário Verde. A chamada “calçada à portuguesa”, conforme a conhecemos, em calcário branco e negro, foi empregada pela primeira vez em Lisboa, na encosta do castelo, no ano de 1842.

Após este primeiro acontecimento, foram concedidas verbas a Eusébio Furtado para que os seus homens pavimentassem toda a área da Praça do Rossio, uma das zonas mais conhecidas e mais centrais de Lisboa, numa extensão de 8.712 m². A calçada portuguesa rapidamente se espalhou por todo o país e colónias, subjacente a um ideal de moda e de bom gosto, tendo-se apurado o sentido artístico, que foi aliado a um conceito de funcionalidade, originando autênticas obras-primas nas zonas pedonais. Daqui, bastou somente mais um passo, para que esta arte ultrapassasse fronteiras, sendo solicitados mestres calceteiros portugueses para executar e ensinar estes trabalhos no estrangeiro.

A calçada portuguesa é a herdeira das pavimentações romanas e a expressão portuguesa dessa tradição. O conceito de pavimentação está aliado a uma certa mentalidade romântica, onde se afirma o valor do nacionalismo, que se vai expressar na busca do passado de signos, factos e mitos considerados marcos fundamentais da história de Portugal e da construção da identidade nacional.
São utilizados por isso na calçada portuguesa padrões e elementos decorativos tipicamente portugueses, relacionados com actividades sócio-económicas, peixes, frutos, cereais, animais, artesanato e sobretudo o período dos Descobrimentos marítimos onde pontificam caravelas, sereias, cordas, conchas, ondas do mar, estrelas e esferas armilares.

Em 1986, foi criada uma escola para calceteiros (Escola de Calceteiros da Câmara Municipal de Lisboa), situada na Quinta Conde dos Arcos. Da autoria de Sérgio Stichini, em Dezembro de 2006, foi inaugurado também um monumento ao calceteiro, sito na Rua da Vitória (baixa Pombalina), entre as Rua da Prata e Rua dos Douradores.


Autor: A. Pires

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Crónica de um percurso

Ainda perduram algumas carreiras de eléctricos em Lisboa, algumas mais modernas (com eléctricos de última geração e linhas reconstruídas) e também as mais antigas, e finalmente a 28, do Martim Moniz aos Prazeres. Destas carreira sobreviventes de uma rede que outrora chegava a toda a parte, a mais longa e complicada é a 28, cujo actual percurso data de 1985, mas que já era possível fazer antes, com outras denominações. Há vários aspectos muito interessantes nesta carreira, que a tornam muito procurada por alfacinhas, portugueses e turistas.

Um é o sabor de andar de eléctrico à moda antiga, lentamente, aos encontrões nas curvas, com o chiar das rodas nos carris. Outro é o descanso, para quem não tenha pressa, de um circuito que, feito em outro qualquer meio de transporte, é um verdadeiro suplício. Finalmente, o percurso, pelos locais onde passa, é um verdadeiro passeio pela vida de Lisboa, desde a fundação até aos nossos dias - ou seja, oito séculos de história paulatinamente apreciados das altas e arejadas janelas do eléctrico, condensados numa hora. 

Foi esta última qualidade que levou o nosso mais competente e interessante historiador de Arte, José-Augusto França, a fazer uma narrativa da viagem. Como ele salienta, no prefácio de "28 - Crónica de Um Percurso", o amarelinho "passa por uma dez igrejas, oito conventos que foram, uns vinte palácios e palacetes que são ou já não são, meia dúzia de prédios de destaque, seis jardins e uma dezena e meia de estátuas, dez teatros e cinemas de que só restam dois..."

Assim embalados, lá vamos pelo 28! 
O percurso pode começar no Largo do Martim Moniz ou no largo em frente ao cemitério dos Prazeres, em Campo de Ourique. Vamos iniciar da base mais antiga, o que permite um certo sentido cronológico.

O Martim Moniz - a mais histórica das chagas da capital - já foi consertado, uma necessidade que se fazia sentir há séculos, mas cujo arranjo certamente continua a desagradar a muita gente. 
Seguimos por ruas, apontando a quem se refere o nome de muitas delas - heróis esquecidos de outras guerras - e salientando uma ou outra construção interessante, que aqui nem há muitas. 
Com efeito, tanto o malfadado largo , como a Rua da Palma e a sua continuação, a Avenida Almirante Reis, nunca conseguiram ser nem bonitos, nem agradáveis, nem particularmente interessantes. São aquelas áreas de maldição que todas as cidades têm, mesmo quando já passaram por séculos de gostos, estilos, destruições e reconstruções. 
Mas o 28 logo depois muda para a rua Maria Andrade (uma das filhas do pato bravo que construiu aqueles quarteirões, vai para mais de um século, ficamos a saber) e começa a subir para paragens mais interessantes.

Até à Graça, e mesmo depois dela, é o século XIX que impera, com monumentos maçónicos e operários, apesar de ser zona habitada á muito mais tempo; contudo logo a seguir, pela Rua das Escolas Gerais (o que seriam?), chega-se à Graça e ao berço da nacionalidade. É o Castelo, é a Sé (mandada fazer por D. Afonso Henriques, logo a seguir à tomada da cidade, no terreno de uma mesquita) são os palácios medievais depois tornados conventos, depois prisões, depois tantas outras coisas. 
O Limoeiro, por exemplo, foi Paço dei Rei D. Fernando, morada de D. Pedro e D. Inês, refúgio de D. Leonor Teles e perdição do Conde Andeiro, quase desapareceu no Terramoto, tornou-se convento, depois prisão e actualmente, limpo e depurado, é... Academia!

O 28 passa atravessa então a Baixa, e estamos no período pombalino. Depois, subindo a Calçada de São Francisco (também pombalina) cruza o Chiado, onde há memórias oitocentistas (o antigo Hotel Bragança, em cujo restaurante se deleitavam os perdidos da vida), símbolos do Estado Novo (a PIDE), e, realmente, um pouco de todas as épocas. 
O mesmo se pode dizer do Camões (a terceira grande estátua levantada em Lisboa, depois do D. José e do D. Pedro IV) e mergulha nas profundezas de S. Bento - a Assembleia da República, que já foi convento, o Poço dos Negros, onde eram atirados a um poço, mais palácios, o primeiro centro de Higiene Pública da cidade, hoje desaparecido, a Faculdade de Economia, a Emissora Nacional...

As referências são sempre múltiplas e de muitas épocas, numa cidade que se vem construindo e destruindo sucessivamente ao vento das catástrofes naturais e aos ventos das histórias, das fortunas, das viradeiras. 
Pausa obrigatória na Estrela, a única loucura da rainha louca, com o seu jardim já quase republicano - e depois é a zona da década de 30 e 40 e da pequena burguesia pré e pró-salazarenta, Campo de Ourique. 
Quanto ao cemitério, a leitura dos jazigos, campas e estilos funerários é, em si, toda uma outra leitura da mesma História.

Como se adivinha nesta breve resenha, há pano para muitas mangas, então, convém não esquecer, pode-se mesmo apanhar o 28 e viver tudo isto. 

Autor: A. Pires
In "28 Crónica de um percurso" de José-Augusto França