Um é o sabor de andar de eléctrico à moda antiga, lentamente, aos encontrões nas curvas, com o chiar das rodas nos carris. Outro é o descanso, para quem não tenha pressa, de um circuito que, feito em outro qualquer meio de transporte, é um verdadeiro suplício. Finalmente, o percurso, pelos locais onde passa, é um verdadeiro passeio pela vida de Lisboa, desde a fundação até aos nossos dias - ou seja, oito séculos de história paulatinamente apreciados das altas e arejadas janelas do eléctrico, condensados numa hora.
Foi esta última qualidade que levou o nosso mais competente e interessante historiador de Arte, José-Augusto França, a fazer uma narrativa da viagem. Como ele salienta, no prefácio de "28 - Crónica de Um Percurso", o amarelinho "passa por uma dez igrejas, oito conventos que foram, uns vinte palácios e palacetes que são ou já não são, meia dúzia de prédios de destaque, seis jardins e uma dezena e meia de estátuas, dez teatros e cinemas de que só restam dois..."
Assim embalados, lá vamos pelo 28!
O percurso pode começar no Largo do Martim Moniz ou no largo em frente ao cemitério dos Prazeres, em Campo de Ourique. Vamos iniciar da base mais antiga, o que permite um certo sentido cronológico.
O Martim Moniz - a mais histórica das chagas da capital - já foi consertado, uma necessidade que se fazia sentir há séculos, mas cujo arranjo certamente continua a desagradar a muita gente.
Seguimos por ruas, apontando a quem se refere o nome de muitas delas - heróis esquecidos de outras guerras - e salientando uma ou outra construção interessante, que aqui nem há muitas.
Com efeito, tanto o malfadado largo , como a Rua da Palma e a sua continuação, a Avenida Almirante Reis, nunca conseguiram ser nem bonitos, nem agradáveis, nem particularmente interessantes. São aquelas áreas de maldição que todas as cidades têm, mesmo quando já passaram por séculos de gostos, estilos, destruições e reconstruções.
Mas o 28 logo depois muda para a rua Maria Andrade (uma das filhas do pato bravo que construiu aqueles quarteirões, vai para mais de um século, ficamos a saber) e começa a subir para paragens mais interessantes.
Até à Graça, e mesmo depois dela, é o século XIX que impera, com monumentos maçónicos e operários, apesar de ser zona habitada á muito mais tempo; contudo logo a seguir, pela Rua das Escolas Gerais (o que seriam?), chega-se à Graça e ao berço da nacionalidade. É o Castelo, é a Sé (mandada fazer por D. Afonso Henriques, logo a seguir à tomada da cidade, no terreno de uma mesquita) são os palácios medievais depois tornados conventos, depois prisões, depois tantas outras coisas.
O Limoeiro, por exemplo, foi Paço dei Rei D. Fernando, morada de D. Pedro e D. Inês, refúgio de D. Leonor Teles e perdição do Conde Andeiro, quase desapareceu no Terramoto, tornou-se convento, depois prisão e actualmente, limpo e depurado, é... Academia!
O 28 passa atravessa então a Baixa, e estamos no período pombalino. Depois, subindo a Calçada de São Francisco (também pombalina) cruza o Chiado, onde há memórias oitocentistas (o antigo Hotel Bragança, em cujo restaurante se deleitavam os perdidos da vida), símbolos do Estado Novo (a PIDE), e, realmente, um pouco de todas as épocas.
O mesmo se pode dizer do Camões (a terceira grande estátua levantada em Lisboa, depois do D. José e do D. Pedro IV) e mergulha nas profundezas de S. Bento - a Assembleia da República, que já foi convento, o Poço dos Negros, onde eram atirados a um poço, mais palácios, o primeiro centro de Higiene Pública da cidade, hoje desaparecido, a Faculdade de Economia, a Emissora Nacional...
As referências são sempre múltiplas e de muitas épocas, numa cidade que se vem construindo e destruindo sucessivamente ao vento das catástrofes naturais e aos ventos das histórias, das fortunas, das viradeiras.
Pausa obrigatória na Estrela, a única loucura da rainha louca, com o seu jardim já quase republicano - e depois é a zona da década de 30 e 40 e da pequena burguesia pré e pró-salazarenta, Campo de Ourique.
Quanto ao cemitério, a leitura dos jazigos, campas e estilos funerários é, em si, toda uma outra leitura da mesma História.
Como se adivinha nesta breve resenha, há pano para muitas mangas, então, convém não esquecer, pode-se mesmo apanhar o 28 e viver tudo isto.
Autor: A. Pires
In "28 Crónica de um percurso" de José-Augusto França